quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

SÓ QUANDO MORCEGO DOAR SANGUE E SACÍ CRUZAR AS PERNAS ...


Há cinco anos, morria Bezerra da Silva, o punk do samba, que não cantava música romântica porque dizia que “essa história de meu amor é conversa fiada”. Preferia retratar o cotidiano das favelas do Rio de forma nua e crua, sem deixar de fora os arranca-rabo entre traficantes e policiais. Os "canalhocratas", termo dele, o acusaram de fazer apologia do crime e inventaram até a alcunha “sambandido” para rotular sua música. Mas não adiantava, porque Bezerra estava sempre nas paradas de sucesso.

Pernambucano, aportou no Rio aos 15 anos, escondido num convés de navio, e foi morar no Morro do Cantagalo, em Ipanema. De servente de pedreiro, chegou a músico da orquestra da Rede Globo e gravou seu primeiro disco em 1976.

– Em matéria de sofrimento, eu só perdi para Jesus Cristo e, mesmo assim, nos pênaltis – dizia, sempre econômico nos sorrisos e pródigo no senso de humor.

Nos anos 90, foi descoberto pela Zona Sul e virou convidado de honra nos shows do Barão Vermelho e do Planet Hemp, onde a massa cantava “vou apertar, mas não vou acender agora/se segura, malandro/pra fazer a cabeça tem hora”.

Em entrevista de 1996, para o jornal O Estado de S. Paulo, no escritório de sua produtora, na esquina mais barulhenta do mundo – Figueiredo Magalhães com Nossa Senhora de Copacabana. Sob o olhar vigilante da mulher, Regina do Bezerra, o sambista nos deu várias lições de vida em cerca de duas horas.

– O Brasil só vai sair dessa baderna quando morcego doar sangue e saci cruzar as pernas – desdenhava, lembrando o refrão de um dos sambas que gravou.

O ceticismo era compreensível naquele sexagenário para quem o poder público só dava as caras fardado, armado e pedindo documentos.

– Não sou bonito como a TV gosta. A razão do meu sucesso é que eu gravo músicas de compositores de verdade.

Os nomes dos parceiros que ele garimpava pelas vielas e biroscas eram um espetáculo à parte: 1000tinho, Popular P., Pedro Butina, Claudio Inspiração, Crioulo Doido, Nilson Reza Forte, Neném Chama, Wilsinho Saravá e, claro, Regina do Bezerra, que também virou partideira depois de casar.

E o linguajar e o cotidiano das favelas rompiam fronteiras. Bezerra adorava contar o dia em que foi contratado para um show no interior de São Paulo e teve uma surpresa:

- O fazendeiro fazia aniversário e a mulher dele, sabendo que ele adorava as minhas músicas, me contratou. Fiquei escondido na cozinha durante o início da festa e depois me chamaram para cantar para os convidados. Eu era o presente de aniversário dele.
Apesar de contar muitos casos engraçados, durante a entrevista Bezerra só riu uma vez, quando viu que eu conhecia muitas de suas músicas:

- Aí, Regina, ele sabe as letras dos sambas todinhas.
Bezerra não tinha autocensura, cantava tudo que achasse que devia e mostrava que na favela os códigos são outros, bem diferentes dos do asfalto:

Lá em cima, mulher adúltera apanha sem dó. "O Chico falou que ninguém vai botar antena na cabeça dele, porque ele não é Embratel."

Delator vai para a vala. "Lïngua de tamanduá tem que levar sapeca-iá-iá, tem que apanhar, pra deixar de vacilar."

E otário "só tem dois direitos: tomar tapa e não dizer nada, porque bolso de otário é nas costas, virado de boca para baixo."

No tempo em que havia prisão para averiguação, Bezerra era levado para a delegacia até duas vezes por dia.

– O delegado me perguntava onde eu morava, e eu respondia: “agora é aqui”, porque onde eu parava, eu morava.

Mas o sucesso chegou, e o tratamento mudou:

– Hoje em dia, a polícia me dá total proteção e até já gravei samba composto por PM.

Sobre o duplo sentido das letras, dizia que a maldade está na cabeça de quem ouve. E cantava sem pudor a música Overdose de cocada:

– É cocada boa...

Mas Bezerra era careta, não bebia, não fumava e, sobre isso, nem mentia, ao contrário de Tim Maia. Só dava voz ao lamento e à ironia “de uma gente sofrida e marginalizada”, como ele definia os moradores das favelas numa época em que ainda não se falava em Polícia Pacificadora nem em Programa de Aceleração do Crescimento.

Sobre a pena de morte, ele dizia:

- Antes, é preciso ter pena do pobre.

2 comentários:

Anônimo disse...

Pois é, perdemos um dos grandes poetas da malandragem ..

Maquiavel disse...

Parabéns pelo Blog... Muito bom mesmo!!!

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Valeu.... Abraço!!